Um conto diferente em homenagem à fábula da cura do diabetes
Sou uma ave à procura de uma cura. Já voei os quatro cantos do mundo, e nada!
Há quem diga sobre outros animais fazendo milagres aqui e ali. Uns por intermédio da oração; outros por meio de magia… – coisa de coruja; nada muito confiável…
De minha parte, enquanto não acho uma cura definitiva, frequento o consultório do dr. Coelho.
O dr. Coelho é bicho arisco. Na sua toca própria, ele é simpático, amistoso e acolhedor, porém, também já não aceita convênio. Até se dá ao luxo de falar mal desse negócio, de citar maracutaias diversas… E em nada se parece com o mesmo dr. Coelho que já vi nas tocas públicas, onde ele se apresenta na sua versão arrogante, tratando os animais mais humildes com um desprezo assumido.
Acontece que o dr. Coelho tem uma toca bonita, muito bem decorada. Nela, parece o próprio rei da floresta, conquanto se exiba como um pavão. À vontade no seu habitat impecável, as técnicas de que se utiliza são de primeira. Dizem ser resultado da sua estada no exterior, quando esteve em contato com espécies que por si próprias se sentem evoluídas demais. Quando exposta a sua sapiência ancestral, meus amigos e eu nos sentimos condenados a permanecer para sempre na nossa mais primitiva condição de animais. Assim, não estranhamos que, deste presente ao futuro, estejamos em vias de uma grande extinção. Ainda mais porque, embora as técnicas internacionais praticadas pelo dr. Coelho na sua toca de luxo, os remédios que ele prescreve nas suas receitas ainda são os mesmos de sempre.
O dr. Coelho é um especialista em doenças crônicas, e colhe apetitosas cenouras dessa sua profissão de recomendar dieta, exercícios e medicamentos aos bichos que sofrem. Alguns deles o questionam a respeito da cura; querem saber quando, enfim, poderão retomar aquele seu estado original de total liberdade e de não dependência, mas o dr. Coelho não sabe e, para dizer a verdade, ele nem acha que tal feito seja possível. Ele vem de uma cultura de dominação das raposas, que vivem interessadas no sofrimento alheio – o que lhes rende um interessante retorno. Afinal, ainda que o abate dos bichos seja sempre um risco iminente, o mundo não é por si só uma grande cadeia alimentar?!?…
Não existiriam melhores doutores do que os coelhos, que têm um par de orelhas bem grandes para dar conta do lamento geral. Eles estão condicionados às ordens das raposas, que definem as regras. As raposas, astutas e oportunistas por natureza, são as representantes dos laboratórios das cobras, que, por sua vez, são as inventoras dos caros remédios que nunca curam. Isso porque elas guardam unicamente para si os antídotos capazes de promover em definitivo o bem-estar da bicharada em agonia. (Toda espécie tem os seus próprios interesses a defender, não é mesmo?)
O que surpreende é a reação dos mamíferos, que costumam ser muito inteligentes, espertos, mas parecem não saber ou fingem não ver essa estranha relação entre os coelhos, as raposas e as cobras. Estariam sendo influenciados por um excesso de convivência com os seus pequenos irmãos, os ratos, que também são dominados pelas raposas e levados para experimentos nos laboratórios secretos?!?…
Achei muito esquisito quando declararam que a gripe dos porcos era o problema maior da saúde de todos. Chegaram até a criar uma cura para essa doença, e assim o fizeram em pouquíssimo tempo (!!!). Diante do pânico geral, lá se via a imediata vacinação de todos os animais! Mas o curioso é que nem mesmo os porcos – apontados como os provocadores da doença – pareciam assim tão doentes… Por que, então, aquela outra doença, para a qual se devem tomar muitos remédios e aplicar injeções diárias, e que é bem capaz de causar complicações muito graves, que vão desde o comprometimento da nossa visão até a amputação das nossas patinhas, não é tratada como uma pandemia também?!?… Será que 347.450.569 animais doentes na nossa floresta não são um número assustador o bastante?!?… (Opa! Acabo de ver uma alteração nas duas últimas dezenas: de 569 para 590. Daqui também temos acesso ao mundo da tecnologia; fomos informados de que um de nós adoece a cada 5 segundos…)
O meu problema é que não tenho o mesmo conforto que os cachorros e os gatos. Mesmo diagnosticados, eles parecem “adaptados”, talvez porque a sua espécie seja mais propícia à domesticação. Só que às aves é inerente voar! Não gosto de que me prendam em gaiolas, mesmo que seja a pretexto de me cuidarem. Faz parte da minha natureza animal: nasci com asas; sou contrário a que me podem.
Então, continuo por aí, voando pelos quatro cantos do mundo à PRÓ-CURA.
No fundo, invejo os humanos… Eles sim sabem o que fazem.
Marcelo G. Raydo e Iara Mola
10 de novembro de 2011
*No momento da publicação deste conto, passamos para o expressivo número de 347.458.040 animais adoecidos atualmente.
SOBRE A PARCERIA DOS AUTORES
Ninguém há de contestar que, se por um lado a internet pode ser utilizada como uma ferramenta capaz de promover encontros exclusivamente virtuais, aos seus usuários também é dada a possibilidade de torná-los encontros reais, e foi exatamente o que aconteceu entre Iara Mola e Marcelo G. Raydo.
Em 2010, de passagem pelo blogue daquele que em breve se tornaria o seu mais novo amigo e parceiro de aventuras literárias, as postagens de Marcelo Raydo em https://marceloraydo.wordpress.com, referentes tanto à sua vivência como diabético quanto a temas diversos, chamaram a atenção da redatora, também diabética e interessada nos mesmos assuntos e gêneros textuais (http://iaramolaescritora.blogspot.com).
Dos comentários nos blogues e da troca de e-mails foram descobertas as afinidades, nascendo daí a amizade e as primeiras parcerias entre os dois.
Marcelo, experiente designer e ilustrador, cuja criatividade também se revela na sua qualidade como blogueiro, contista e escritor, e Iara, escritora, redatora e revisora de textos, apaixonada pela Língua Portuguesa, escreveram juntos a obra “A Máquina da Metamorfose”, que se direciona ao público infanto-juvenil e está sendo analisada por uma equipe editorial para a sua publicação oportunamente.